Inconsciente musical
- Natália Tayota
- 15 de ago. de 2024
- 8 min de leitura
Atualizado: 8 de set. de 2024

Que a música mexe com o nosso cérebro e libera os neurotransmissores do prazer todo mundo sabe, mas o que dizer sobre a música na nossa #mente? Aquela que não sai da cabeça! Como explicar os nossos atos falhos musicais? Aquelas letras que a gente escuta e canta errado. Por que escutamos aquilo? Escutar a palavra errada muda todo o sentido. E que sentido é esse? Por que as melodias musicais evocam nossas memórias e nos transportam no tempo? Por que gostamos tanto de música?
Gostar de música é quase que uma verdade universal. Eu nunca conheci alguém que não gostasse, mas sei que tem gente que não é sensibilizada pela música, característica que os neurocientistas nomeiam como anedonia musical ou amusia. Anedonia é um sintoma comum na depressão, que é a falta de capacidade de sentir prazer. Quando associada especificamente à música, diz sobre as pessoas que não sentem arrepios nem veem seus pés mexendo sozinho ao escutar a música que gostam. Para neurociência, essa incapacidade é uma desregulação de neurotransmissores que afeta diretamente os receptores auditivos, pois esse tipo de gente tem reação a outras fontes de prazer que não as musicais. E para #psicanálise, o que essa ausência de prazer quer dizer? O que já se produziu sobre o tema análise, a música e seus efeitos terapêuticos? De onde vem esse gostar que a maioria de nós sente? E quem não gosta, por que não gosta?
A linguagem musical pode ser entendida como universal e mãe de todas as linguagens porque antes da palavra veio o som. Dizem até que o batimento cardíaco e a respiração da nossa mãe é a primeira música que a gente ouve. Tudo vira música? A expressão “isso é música para os meus ouvidos” nos remete à escuta de algo que é tão bom que soa como música, mesmo não sendo. E o “isso” para psicanálise é o inconsciente, o id, nossa camada mental mais primitiva. Lacan adiciona o elemento voz nas pulsões de Freud e a nomeia como pulsão invocante. Seria a voz da mãe o que nos convoca à existência e de onde internalizamos essa voz materna que virá a se diferenciar na constituição da nossa voz interna, até que se forme o nosso eu e o sujeito do inconsciente.
Se a música vem antes disso, antes da castração simbólica e da barra que nos divide entre o consciente e o inconsciente, então quer dizer que nosso inconsciente é musical? A sonoridade da palavra é a imagem acústica dos significantes que ressoam em nossa mente. A voz é o traço único do sujeito, assim como a escuta musical, uma experiência individual e não compartilhável. Não escutamos do mesmo jeito e nem do mesmo lugar, a exemplo dos músicos que escutam diferente de nós. As vozes que nos permeiam e mobilizam nossas emoções e afetos passam pela introjeção do objeto voz primordial. Escutar música e sentir os prazeres que ela nos traz seria um jeito de voltar a ouvir essa voz primeva? Se for assim, então quem tem anedonia musical não internalizou a pulsão invocante?
Freud relata a observação de seu neto na brincadeira do fort-da, cujo movimento produz uma experiência sonora a partir do vaivém do carretel, o que remete à ideia de ausência e presença, uma brincadeira de “esconde e acha” que as crianças pequenas adoram e que, em sua análise, foi um jeito do neto lidar com a ausência da mãe. É daí também que vem a compulsão à repetição, e a música nada mais é do que repetição, tal como o #inconsciente. Ouvir música, repetir neuroticamente a mesma música mil vezes, além de nos dar prazer, seria um jeito de se ligar a um sentimento primitivo, àquela voz que escutamos ainda na vida intrauterina? Ao nascer, ser ninado apazigua nosso choro e nos conforta, então escutar música é uma experiência de voltar a ser a partir do ninar que remonta o nosso desamparo inicial?

Nesse sentido, a música fala com o nosso vazio, a nossa solidão, com o desamparo ao qual somos todos submetidos. A música é uma voz que nunca nos deixa sozinhos e que nomeia sentimentos que muitas vezes não conseguimos traduzir em palavras. No meu percurso analítico, sempre me furtei das músicas para me ajudar a entender e nomear o indizível. É como se fosse uma comunicação inconsciente entre subjetividades, um empréstimo de palavras. E esse ato da música às vezes acontece sem querer, assim quando toca uma música no modo aleatório que você não conhece, mas era tudo o que precisava ouvir pra completar um raciocínio, para fechar a elaboração de uma situação e levar para a análise. E desse jeito, a música pode nos ajudar a construir metáforas para os nossos sintomas. A intervenção com música pode ter efeito além da palavra, o som e a sensação que a música produz ajuda a chegar a entendimentos profundos.
A música como sublimação do impossível
Segundo Lacan, a sublimação, mecanismo de defesa que desloca a pulsão impossível de ser realizada para uma produção que é possível, vem do vazio, da Coisa. Então esse modo de sublimar, de transformar a subjetividade em arte, pode ter a capacidade de conectar a subjetividade do ouvinte com a do artista, emprestando a produção de sentidos dada pelo seu criador.
Leandro Tavares em sua tese “Psicanálise e musicalidade(s): Sublimação, Invocações e Laço Social” (2014), diferencia o “ato criativo” de outras produções criativas porque o ato da sublimação está ligado ao inconsciente e não ao Eu, como em outras formas artísticas. Ele cita Maria Rita Kehl, que diz:
“Talvez o gozo alcançado pela fruição estética, dos que apreciam as obras de arte em qualquer nível que lhes seja possível, também seja uma forma de sublimação [...] O leitor, o ouvinte, o espectador, recriam à sua maneira a obra, e essa dimensão criativa da recepção incorpora-se às futuras leituras que a obra há de produzir [...] podemos considerar a relação de um sujeito qualquer com uma obra de arte como um trabalho de sublimação”. (KEHL apud TAVARES, 2014, p. 130).
A música também é capaz de provocar o sentimento oceânico, isso que nos faz sentir unicidade e conexão com o Todo, um gozo semelhante à experiência mística que pode promover até uma espécie de foraclusão da realidade, uma alteração de consciência, não é à toa que é usada em ritos e processos de cura ancestrais. A música é curativa. Dizem que no ideograma chinês antigo, o símbolo da medicina advém da música. No desenho, é só uma “perninha a mais” que os diferencia, por isso a música pode ser entendida como uma medicina em diferentes culturas e liturgias. Ela ajuda na elaboração simbólica, promove catarse, afirma nossa identidade e nos dá senso de comunidade e pertencimento. A música evoca memórias e nos transporta ao passado como uma forma de mobilizar o recalcado, mexer com o conteúdo reprimido e nomear o Real. Podemos até dizer que certas músicas evocam uma memória ancestral, como o som do tambor, como os ritmos que nos colocam em contato com um “estranho-familiar” numa espécie de “teletransporte” no tempo.
E de onde nasce a música? Dizem que as primeiras músicas emulam os sons da natureza, o que faz sentido já que existem tradições culturais em que a comunicação se dá por meio da música do assobio. Nas Ilhas Canárias, na Espanha, e numa cidade turca chamada Kuskoy, a linguagem dos pássaros é preservada e ensinada às crianças como traço cultural da comunidade. Se música é comunicação e cultura e pode ser ensinada de geração em geração, como o canto dos pássaros, a música é uma comunicação da natureza e tem caráter transgeracional.
O psicanalista Anchyses Lopes (2013) também contribuiu com a pesquisa e resgatou uma fala de Rousseau, escrita meio século antes da psicanálise, que diz que a melodia é uma linguagem e “a música tem cem vezes mais energia que a própria palavra”. Deste modo, podemos entender que evocar e repetir o canto, o mantra, mesmo que as palavras não sejam nossas, traz força e efeito de linguagem para o nosso inconsciente. Além da canção, a música também é ritmo e, segundo Tavares (2014), seu representante psíquico é o deslocamento, a dimensão temporal que traz a mobilização psíquica. Já a melodia remete à emoção, as imagens mentais que construímos pela música e suas representações psíquicas. Portanto, na experiência auditiva musical estão inseridos os aspectos físico-biológicos e também psico-afetivos.
Na literatura espírita é possível encontrar um entendimento parecido sobre os efeitos da música. Em um texto publicado na Revista Espírita Jornal de Estudos Psicológicos, em 1869, o médium Sr. Nivard escreveu que a harmonia de uma música pode ser considerada “consoladora como a mãe e protetora como o pai”, que é o sentimento do compositor posto para produzir sensações no ouvinte, porém a experiência auditiva dessa harmonia é sempre parcial, uma vez que “a harmonia é tão indefinível quanto a felicidade”. Na visão espiritualista, o músico recebe a inspiração, concebe a música e repassa o que ouviu para o ouvinte, que ouve uma coisa outra. A harmonia e melodia embalam a gente, nessa sensação de consolo e proteção.
Se música também é uma experiência espiritual que toca nossa alma, e se a sublimação é o que nos faz romper com os ideais e identificações, a escuta musical seria um jeito de criar objetos que representam aquilo que não é passível de representação? A música seria algo que nos coloca diante do nosso “verdadeiro eu” porque remontaria à cena primária e ao objeto causa do desejo? Fazer análise nos ajuda a encontrar a nossa harmonia verdadeira e separar os sons dissonantes e as vozes que não são nossas, então considerando que a musicalidade está associada a eventos psíquicos fundamentais para a constituição do sujeito e que ela se dá antes da formação total do psiquismo, podemos pensar que a música pertence a uma ordem metapsíquica?
As vozes internalizadas

Há vozes e músicas que a gente nunca esquece. E também existem vozes que a gente detesta e passa a não gostar da pessoa ou da música porque essa voz nos irrita. Irritação, assim de graça, sem conhecer a pessoa. Mas será que é de graça? O tom de voz de alguém, o timbre e as modulações da fala sempre vão remeter a uma voz original? A entonação de uma pessoa que nos irrita faz lembrar de alguém “já esquecido”? Isso justificaria porque a gente às vezes gosta da música, mas não gosta da voz de quem canta? E o que define uma voz agradável e desagradável aos nossos ouvidos?
Nas retrospectivas do Spotify, quais são as vozes que mais escutamos e sobre o que isso fala? Teve um ano que a brincadeira era ver o gênero do artista mais ouvido. No meu app deu mais de 90% de voz masculina e eu me senti meio mal por isso. Por que eu tava ouvindo mais homens e não valorizando a escuta de mulheres artistas? Será que era só uma coisa do mercado ou tinha a ver com as minhas escolhas? E a questão aqui é o porquê da internalização de um tipo de voz em detrimento de outra? Pode até ser que existam mais artistas homens por falta de espaço para as mulheres, mas e a escolha de se ouvir essa voz? Tá no inconsciente assim como a escolha de objeto?
Ser tocado por uma música ajuda a silenciar o nosso barulho interno; entre o som e o silêncio tem um sujeito que produz, num ritmo que é só seu. Nesse sentido, podemos considerar que a música é simbólica, imaginária e real. A música tem estrutura de palavra, mas é corpo, é ouvido, é dali de onde não penso, mas sinto e sou, inconscientemente. Se a música nos acolhe e colabora no nosso “autoconhecimento”, então ouvir é se reconhecer? É relembrar o que foi esquecido? A música seria um ato capaz de promover uma mudança de posição no discurso? Assim como têm músicas que mudam nosso padrão vibratório, o efeito da música no inconsciente pode ajudar na elaboração psíquica dos sintomas e na transformação subjetiva de um sujeito implicado na análise.
Referências
LOPES, ANCHYSES JOBIM. Afinal, que quer a música? Estud. psicanal. [online]. 2006, n.29. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372006000100011>
LOPES, ANCHYSES JOBIM. Dos gritinhos da bebê ao canto do fort-da (psicanálise e música 2). Disponível em:<https://anchyses.pro.br/dosgritinhos2.htm>
TAVARES, Leandro Anselmo Todesqui. Psicanálise e musicalidade(s): sublimação, invocações e laço social / Leandro Anselmo Todesqui Tavares.- Assis, 2014 167 f. Tese de Doutorado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis - Universidade Estadual Paulista Disponível em: <https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/114008/000797313.pdf?sequence=1>
BBC Brasil. Ilha espanhola revive tradição de se comunicar por assobios.
REVISTA ESPÍRITA. Jornal de Estudos Psicológicos. Paris, 1869. Tradução Evandro Noleto Bezerra. Disponível em: https://www.febnet.org.br/ba/file/Downlivros/revistaespirita/Revista1869.pdf
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