A morte e o tempo dos neuróticos
- Natália Tayota
- 18 de ago. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 27 de ago. de 2024

Existem duas possibilidades de morte em vida. A primeira, é a mais triste das mortes, que é ser um vivo-morto, no sentido de não viver a vida, ou seja, de estar morto simbolicamente. A outra, é a morte pelo atravessamento, a morte de símbolos, significantes e significados que a gente vai absorvendo pela vida sem questionar. Essa, então, seria uma “boa morte”, a morte produtora de mais vida! Nesse sentido, o que precisa morrer na gente para impulsionar a vida? A pulsão de morte pode se transformar em pulsão de vida? De que maneira a repetição neurótica faz a morte pulsar? O que está por detrás do automatismo da vida? Qual a relação dos #neuróticos com o tempo? O que a gente tem que fazer para renascer sem precisar morrer “de verdade”?
Quanto tempo de vida a gente tem?
Essa é uma pergunta sem resposta. Embora seja alta a expectativa de vida, a gente não sabe quanto tempo vai viver. O que a gente sabe (ou deveria saber) é que o tempo é um recurso finito. Quanto tempo o tempo tem? O mundo capitalista nos diz que tempo é dinheiro. Será? Outros dizem que existe o tempo certo das coisas e sempre há tempo pra tudo na vida. Será? De que tempo estamos falando? É o tempo do outro ou o tempo do sujeito?
Aquele meme do menino que responde o “sem tempo, irmão” é um reflexo do nosso tempo. E o nosso tempo é a falta de tempo! No meme, o "amigo" questiona o motivo de ter sido bloqueado no WhatsApp e a justificativa é a falta de tempo. Ninguém tem tempo! Mas isso também pode ser outra coisa, não ter vontade ou interesse, e aí fica tudo na desculpa do tempo. Por que a gente coloca a culpa no tempo para as coisas que não queremos fazer? Não temos tempo mesmo ou não estamos sabendo utilizar nosso tempo?
O WhatsApp é um recurso que ajuda a resolver bem o nosso tempo e adianta muita coisa. Mas adianta poder adiantar o tempo da conversa e não entender bem o outro? Ninguém se escuta mais. Não temos tempo! E se a gente não tem tempo pro outro, a gente tem tempo pra gente? Com que a gente gasta o nosso tempo? O tempo pode até ser um paradoxo, mas o adiamento do tempo pode ser um sintoma dos nossos tempos. Por que adiamos tanto?
Numa reportagem antiga, a jornalista Eliane Brum conta a história de Ailce, em “A mulher que alimentava”. Essa mulher foi uma merendeira que dedicou a vida para alimentar os outros e não alimentou a si mesma. Embora tenha nutrido o desejo de ser independente, de viajar, de conhecer outros lugares, ela cedeu ao tempo. E quando a oportunidade da viagem chegou, era outro tipo de viagem. O diagnóstico de câncer incurável trazia a imposição da morte e dos últimos momentos de vida. Para ela, essa foi a chance que teve de poder ser ela mesma, de poder dançar livremente pelo salão sem ser conduzida, como ela sempre sonhou:
“Passei a vida inteira batendo ponto, com horário pra tudo. Quando me aposentei, arranquei o relógio do pulso e joguei fora. Finalmente eu seria livre. Aí apareceu essa doença. Quando tive tempo, descobri que meu tempo tinha acabado”

O adiamento e o estadiamento. Com o avançar da doença, Ailce tinha urgência de viver a vida adiada, viver tudo aquilo que não viveu. Ela queria simbolizar o real, aquilo que estava no seu corpo e que, embora tivesse nome, era inominável, impronunciável. Viver tudo de uma vez era o jeito de encontrar um sentido tardio para uma vida esvaziada de sentido. É algo daquilo do que "poderia ter sido e não foi". E por que não foi? E por que não é? Não foi por falta de tempo? Não se tem tempo pra ser quem se é?
Como muito de nós, Ailce seguiu o roteiro. Casou, teve filhos, passou num concurso público, nunca faltou ao trabalho. Fez o que o mundo esperava dela, não o que ela queria fazer. Sua história real é o oposto de sua fantasia. Ela não queria ser mãe, mas foi porque ficou presa às convenções sociais, e foi vivendo num looping infinito de ‘prazer e desprazer’ ou ‘prazer no desprazer’ até que a morte a libertou e, finalmente, ela conseguiu ser quem ela queria.
Antes de conseguir "aproveitar" o último tempo de vida, Ailce ficou revoltada com Deus por causa do seu diagnóstico. Sentiu-se traída pois havia sido uma "boa filha". Ela fez tudo o que tinha que ser feito e agora estava à beira da morte. Deus, para ela, era o pai ingrato aos seus sacrifícios e que a punia com a doença. E o lugar de Deus, do pai e das instituições é o lugar do desejo do #Outro; Deus era o Outro, então Ele era o culpado pelo seu sintoma e não o não-desejo dela.
A história de Ailce poderia ser a minha, poderia ser a sua e é uma narrativa triste, mas comum de se ouvir. A neurose faz o sujeito sofrer de obediência, de culpa e de um pensar excessivo que se repete no lugar do desejo que não pode existir. Como é que a gente se perde numa vida ordinária, cheia de obrigações e de repetições não pensadas? Qual o lugar e o limite do trabalho? Por que tanta gente compra o modelo das convenções sociais? Por que a gente gosta de dizer que não tem tempo? Qual é o gozo disso? Falar que não tem tempo traz uma noção de relevância pra nossa existência, de ocupação, de utilidade, mas será que isso não é se dar importância demais (ou de menos)? Matar o tempo ou deixar que a falta de tempo nos mate? Quem morre primeiro?
Palavras matam coisas
Um dia, lendo #Lacan, fiquei chocada ao descobrir o óbvio. Ele diz que não é que o neurótico obsessivo tem excesso de pulsão de morte, ele já está morto. “O sujeito, de certa forma, matou antecipadamente o desejo em si mesmo; se assim podemos dizer, ele o mortificou”. (LACAN, 1995 p.27) Em suas tentativas de controle, repetições e dúvidas, o neurótico identifica o desejo do outro como seu e se deixa escravizar pelas expectativas sociais e familiares. Ele vive um eterno ciclo de automatismo, de repetição sintomática sem elaboração. Sempre querendo um a mais. E é aí que está o gozo mortífero, o excesso. Aquilo que não é possível nomear, que dá prazer e faz sofrer ao mesmo tempo. Uma #psicanálise também é sobre reedição. Reeditar as cenas primárias para editar uma outra história. É sobre atravessar o fantasma e transformar a pulsão de morte.
Lacan disse que “a palavra é a morte da coisa”. No lugar da coisa, entra a palavra para dar sentido, porque o simbólico nos ajuda a dar conta do real. A morte simbólica pode ser de muitas coisas, mas a principal é a morte do ideal do eu, essa instância imaginária que faz a gente querer responder ao que o mundo espera da gente. Ideal do eu, supereu e pulsão de morte estão relacionados à medida que deixamos as regras sociais matar os nossos desejos genuínos, quando na verdade é a gente que tem que matar as coisas. A agressividade obsessiva que se volta contra si mesmo, como um automasoquismo, deveria ser usada para simbolizar a falta. A falta de quê? Eu também não sei! É preciso recordar, repetir e elaborar novas possibilidades de vida. A pulsão de morte também é de vida e, às vezes, é na morte que se acha mais vida.
Esse vídeo tem uma metáfora bonita sobre o "Recomeçar", sobre desmontar o piano para entender seu funcionamento interno e saber para que servem cada uma das peças que alicerçam as nossas neuroses.
Referências
BRUM, Eliane. A mulher que alimentava. Revista Época. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,ERT10410-15257-10410-3934,00.html>
LACAN, Jacques, O seminário, livro 4: a relação de objeto I Jacques Lacan; texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução Dulce Duque Estrada - Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
LAPLANCHE, L. Vida e Morte em Psicanálise. Cap. Por que a pulsão de morte.
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